sábado, 2 de julho de 2016

Apologética do Futuro – 'porque tive fome e me destes de comer…'

Sabe seu Manoel, lá pelos idos dos anos 2016 eu ainda tinha alguma esperança de que as coisas iriam melhorar. Eram tempos difíceis, o senhor bem se lembra… Eu, que nessas alturas ainda era um jovem estudante, achava que a tecnologia seria a grande graça dada por Deus para vivermos bem nesse mundo. Olha só, que tristeza: acreditando nas obras dos homens. O senhor sabe que eu cheguei a militar nessas causas? Acreditava piamente que a fome acabaria, que as doenças deixariam de existir. O fato é, cá estamos no ano 2100 e as coisas só pioraram. Aliás, melhoraram só para os abastados…

Mas no meio de tudo isso, fiquei tão feliz, seu Manoel, quando ontem pela manhãzinha… Oras seu Manoel, sente-se logo nessa cadeira que aqui a casa nem minha é: é do Senhor Jesus! Pois então se sente aí e sirva um pouco de chá pra nós dois que vou lhe contar o que houve. Aprumou-se? Pois bem, escute só.

Ontem pela manhã, quando o carteiro passou por aqui me gritando, deixou uma carta de Dom Antônio, padre muito amigo meu que anda lá pelo que restou do Brasil fazendo missão. Sentei ali no sofá e comecei a ler a carta. Lia, lia, relia e não conseguia conter as lágrimas. Dizia ele que já não havia muito pelo que rezar naquele lugar: nem povo, nem chuvas, nem colheita, nada. Havia tornando-se pároco de uma pequena igreja isolada no meio do nada, como quase todas as outras que lá ainda existem.

Parecia amá-la tanto, veja como a descreve:

"Uma igrejola de uns 5 metros de altura (a maior parte deles devido à sua torrezinha com um sino), que havia de ser branca antes da ventania de areia deixar-lhe apenas o cimento nas paredes. Sem janelas e com apenas uma porta de madeira que se nega a deixar-se comer pelo tempo. Ainda azul por dentro, no presbitério elevado por um único degrau de mármore branco, há apenas um altar unido à parede com um sacrário no meio. O altar ainda conserva, logo acima do sacrário de bronze já desgastado (onde figura um cordeirinho imolado, encimado por uma bela cruz), uma imagem em estilo barroco de Nossa Senhora das Graças (mas que parece ser uma impressão 3D em plástico). Seus quatro bancos de madeira, separados em duas filas, ainda mantém seus genuflexórios intactos."

Sei que não pôde demorar muito falando dela como queria, disse-me que havia pouco papel e pouca tinta, e que desejava relatar algo que acontecera com ele poucos dias antes de escrever a carta. Explicou-me que naquela região os bancos da Igreja, que já não são muitos, nunca viam mais do que uma ou duas pessoas nas missas dominicais. Por vezes não podia distribuir a comunhão porque – que dificuldade! – celebrava com apenas umas gotas de vinho velho e um pequeno pedaço de pão.

Contou então um caso, ah que caso! Levou-me as lágrimas seu Manoel, o que falou logo em seguida. Estava ele sentado em um dos bancos da igreja cantando a Meridiana, lá fora o sol castigava tanto que o pouco vento que entrava pela porta lhe cozinhava os miolos. A boca rachada de sede, pois a única ajuda (que vinha da Igreja), havia se tornado tão parca que passados dias não comia ou bebia. Parecia-lhe, dizia ele, que agora a Igreja se preocupava mais com os sãos e os descarados (palavras dele!) do que com os doentes e arrependidos.

Mesmo com a sede e a fome estava lá, fiel ao ministério de orar pelo povo e pelo mundo. Enquanto revisitava a monotonia cotidiana de sua salmódia ouviu pequenas batidas na porta: estaria delirando pela fome e pela sede? Olhando para trás viu uma figura esguia, tão raquítica e ossuda quanto a própria morte, estendendo-lhe a mão e lhe dizendo com a voz tão trêmula quanto a visão do horizonte naquele inferno:

– Posso entrar, senhor?

Respondeu-lhe prontamente que a casa era de Deus e, por tanto, ali eram bem vindos todos os seus filhos. A figura entrou, repousou o que lhe restava de corpo em um dos bancos e começou a chorar. Ao aproximar-se, Dom Antônio cobriu-lhe com um lençol roto e perguntou-lhe de onde vinha (e para onde ia), ao que ouviu um soleníssimo:

– Não sei…

Perguntou então se tinha fome e sede, o que havia de ser óbvio para qualquer um apenas ao ver aquela figura. Recebeu como resposta um singelo balançar de cabeça. Como não havia de alimentar e saciar a sede daquela criatura de Deus? Mas nada tinha, ele mesmo, para comer. Estava à espera – interminável – da pouca ração que havia de vir de Roma como ajuda da Igreja, mas olhava para aquele irmão e já sentia dores de compaixão. Eis que se recordou que havia ainda, no Sacrário, algumas poucas partículas consagradas na última Missa.

Questionou àquele ser se era batizado. A negativa lhe fez tremer por inteiro. Enquanto permanecia de pé, embasbacado, o Espírito Santo veio em seu auxílio e o seu irmão disse em voz baixa:

– Senhor, se tem alguém que te faça tão bom que o senhor se preocupe comigo mesmo sem ter o que comer também, me deixa falar com ele?

Quando li isso, seu Manoel, despenquei em lágrimas. Tá aqui ó, o papel todo manchado. Engraçado que meu irmão diz ter chorado na mesma hora… Até que, segurando as lágrimas, perguntou àquela figura se queria mesmo conhecer a Jesus e servi-lo e se estava arrependido de todo e qualquer mal que tivesse feito em sua vida. Tendo recebido um breve balançar de cabeça como resposta, pois-se a batizá-lo. Percebeu tardiamente que não tinha água com que batizar, então, ao longo do rito, onde havia de banhar-lhe a cabeça, fez uma pequena prece em silêncio, molhou os dedos nas gotas de água que restavam em seu cantil, e marcou-lhe a fronte em forma de cruz.

Dom Antônio então leu para José, de sua bíblia já muito gasta, a liturgia do dia:

"Então o Rei dirá aos que estão à direita: – Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do Reino que vos está preparado desde a criação do mundo, porque tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; era peregrino e me acolhestes; nu e me vestistes; enfermo e me visitastes; estava na prisão e viestes a mim."
São Mateus 25, 34-36

Viu um brilho tão intenso nos olhos de José, que a cada minuto se admirava mais com a beleza daquele Deus imenso, que havia chegado faminto, sedento, desterrado, despido, doente, preso à carne; assim como ele que agora estava ali na frente do meu amado irmão, que após uma longa vênia abria o tabernáculo onde habitava aquele amor tão grande. José, instintivamente ajoelhou-se e rezou. Dom Antônio, enquanto preparava no Altar o repouso do pequeno cibório, explicava os eventos da Santa Ceia e da Paixão de Cristo, para aquele que seria até o fim de sua vida, seu ouvinte mais atento.

Ao fim, contou as partículas no cibório: sete. Pensou se havia ele mesmo de alimentar-se também do pão dos anjos, mas viu que a pouca quantidade mal alimentaria seu pobre irmão. José gastou algum tempo admirando aquilo que parecia apenas pão, mas era Corpo e Sangue. Dom Antônio deu-lhe quanto tempo foi necessário para adorar aquele Deus tremendo… José então abriu-lhe a boca ao que meu amado irmão lhe disse:

– Corpus Christi.

José, como ensinado, respondeu-lhe firmemente:

– Amém.

E alimentou-se daquele de quem é dito, seu Manoel, “Este é o pão que desceu do céu, para que não morra todo aquele que dele comer”. Meu querido irmão completou dizendo que José repousou na Igreja e lá dormiu. No dia seguinte, quando levantou-se, já não o encontrou na igreja. Creio que ainda tinha muito mais para contar-me, principalmente daquilo que sentira, mas pela vontade de Deus, esgotou-se papel e tinta…
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